COLUNA ÉTICA ANIMAL - JUS ANIMALIS
02 DE ABRIL DE 2024
Justiça para os gatos de Caxias do Sul! Um caso de especismo e sexismo

“Animalistes de tous les pays, de tous les partis et de toutes les confessions, unissez-vous!”
Corine Pelluchon [1]

A frase que abre o texto deste mês foi retirada do Manifesto animalista. A filósofa francesa Corine Pelluchon se une ao coro de feministas veganas e ecofeministas para analisar as conexões entre as violências sexistas e especistas. Ela convoca animalistas do mundo a se unirem em prol de uma mudança paradigmática. O atual estado no qual vivemos é um horror para as demais espécies, sobretudo, graças ao modelo de produção industrial perpetrado pelos matadouros. Os zoológicos, as touradas, a caça, a pesca, as roupas com peles e couro e outras práticas especistas agravam a situação. 

Na entrevista com a filósofa realizada pelo portal Jus Animalis a autora enfatizou seu posicionamento frente a conexão entre as violências e a necessidade de ampliação dos direitos dos animais. Para ela: “os animais são competentes e agem, e a justiça significa levar em conta os interesses tanto dos humanos quanto dos animais, já que compartilhamos a Terra com os animais e formamos uma comunidade mista, uma zoópolis” [2]. As relações humanidade-animalidade são múltiplas e complexas, desde as formas instrumentais até a formação das famílias interespécies. 

No manifesto animalista ela aborda a luta pelos direitos das mulheres como precedente dos direitos dos animais. Os maus-tratos aos animais não humanos podem significar um alerta de violência contra a pessoa humana, especialmente as mais vulneráveis. Para ela há uma estreita relação entre a violência contra animais e mulheres. Há uma vontade de domínio e uma crueldade contra aqueles que o homem considera seus inferiores. 

Para pensar a relação entre as violências contra animais não humanos e mulheres vamos analisar o caso do torturador de gatos de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul. Anderson Lucas Maciel de Almeida foi denunciado pela ONG Sem Raça Definida (SRD) e encaminhado para prisão no dia 27 de setembro de 2023 sob a acusação de matar gatos, de produzir e de comercializar vídeos das torturas aos felinos. A matéria da Petrus News mostra fotos dele usadas em suas redes sociais, em uma delas ele usa um pano no rosto para encenar de forma grosseira a imagem de um torturador [3].

Ao fazer a busca pelo denunciado, a polícia encontrou os celulares usados por ele e aponta para uma rede de homens envolvidos na compra dos vídeos. Está sendo investigada a rede de envolvimento no crime. No dia 29 de setembro de 2023 a ONG liberou na sua página no Instagram as atualizações sobre os gatos resgatados e informou que todos estavam internados, tiveram as unhas arrancadas, estavam com marcas pelo corpo, tiveram os dentes quebrados ou arrancados segundo o laudo da veterinária. No momento do resgate foi encontrado um crânio de um cão e foi constatado que um dos gatos havia sido morto um pouco antes da polícia chegar na casa de Anderson. 

Em dezembro o advogado de defesa do torturador solicitou que ele respondesse em liberdade pelos crimes cometidos alegando que ele possui “grave transtorno psicótico”. Com o algoz nas ruas, a matança de gatos continuou com mais requintes de crueldade e começaram as ameaças às mulheres da ONG. No dia 10 de janeiro, deste ano, as notícias na página da ONG informaram que às 3 horas da madrugada uma das ativistas recebeu dois vídeos de visualização única com cenas de gatos sendo torturados. Cito o relato: “No primeiro, um gato preto ainda vivo, com as patas abertas e amarradas, e parte do peito mutilado também. E no segundo vídeo um gato branco com parte do focinho cortado. Imediatamente a voluntária reconheceu o fundo como o mesmo local onde os gatos torturados foram resgatados dia 27/09” [4].

O torturador de gatos foi preso pela segunda vez, em 2024, agora com o agravante de ameaçar as mulheres da ONG. O caso ganhou contornos muito perigosos no período que ele ficou encarcerado no início do ano. Outros gatos torturados e enforcados começaram a aparecer em Caxias do Sul. O que indica que a sua rede de “amigos” está atuando em “solidariedade” no período em que o torturador estava preso. O caso mais grave foi o da gatinha Maju, ela teve uma lesão na face de aproximadamente 10cm, tão profunda que causou a exposição do osso mandibular. O formato do corte é ‘perfeito’, só pode ter sido realizado com bisturi ou algo próprio para cortes nesse sentido”, relatou a veterinária em seu laudo [4]. No dia 05 de março a ONG noticiou o falecimento da Maju, devido à gravidade da violência. O torturador foi colocado novamente em liberdade e a rede de “amigos” ainda não foi localizada. 

Precisamos fazer alguns questionamentos: até quando a justiça será branda com relação à violência contra os animais não humanos? No caso do torturador de gatos, quantos animais serão mutilados e torturados até que ele fique preso definitivamente? Quantos vídeos irão circular livremente para alimentar os desejos mórbidos de homens sádicos? A vida dos gatos e das ativistas da ONG tem menor importância social? 

Maria Padilha é autora do livro Crueldade com animais x violência doméstica contra mulheres: uma conexão real. A obra inicia com uma epígrafe de Arthur Schopenhauer: “A compaixão pelos animais está intimamente ligada à bondade de caráter, e pode ser seguramente afirmado que quem é cruel com os animais não pode ser um bom homem”. O livro é resultado de uma pesquisa realizada em Pernambuco, em 2010, que examinou as conexões entre a crueldade praticada contra animais e a violência doméstica contra as mulheres. Diz ela: “Dentre os diversos tipos de violência praticadas contra os animais de companhia, principalmente contra cães no contexto familiar, a violência física é a que predomina e tem como principal agressor o mesmo homem que agride a mulher” [5]. 

A autora nos diz que, em geral, as pessoas não enxergam que as agressões contra animais estão ligadas com as agressões contra humanos. Para Padilha, é necessária uma conscientização, com mais pesquisas e trabalhos na área educacional. O livro é claro e direto, apresenta os dados em gráficos e reforça a necessidade de estudos sobre o tema. Existe uma íntima ligação entre o paradigma antropocêntrico e a cultura patriarcal. Essa ligação manifesta-se na obsessão pela dominação e controle tanto sobre as mulheres quanto sobre as outras espécies. 

O caso dos gatos de Caxias do Sul é gravíssimo e merece muita atenção com relação às redes de ódio sexista e especista que circulam livremente nas redes sociais. O mundo no qual vivemos é alimentado pelo sangue da indústria da carne, não podemos naturalizar a matança das outras espécies. Não haverá progresso planetário enquanto a violência contra os animais não humanos não for barrada ou minimizados os seus danos. Em janeiro deste ano meu texto na coluna Ética Animal versou sobre o ódio e a adoração aos gatos. O torturador de Caxias do Sul confirma um ódio secular. Não podemos nos calar, sem empatia e respeito aos animais não humanos a humanidade está fadada ao fracasso. O amor e respeito às outras espécies é um passo importante para nos tirar do abismo que construímos.  

Referências bibliográficas

[1] Tradução livre: “Animalistas de todos os países, de todos os partidos e credos, uni-vos!”. PELLUCHON, Corine. Manifeste animaliste. Paris: Éditions Alma, 2017, p. 111.

[2] JUS ANIMALIS. Entrevista com Corine Pelluchon. 25 mar. 2024. Disponível em: https://jusanimalis.com.br/entrevistas/entrevista-com-corine-pelluchon. Acesso em 02 abr. 2024. 

[3] DIAS, Ailton. Homem é preso acusado de mutilar e gravar tortura de gatos em Caxias do Sul. Petrus News. 28 set. 2023. Disponível em: https://www.petrusnews.com.br/homem-e-preso-acusado-de-mutilar-e-gravar-tortura-de-gatos-em-caxias-do-sul/. Acesso em 30 mar. 2024. 

[4] Os relatos e documentos sobre o caso podem ser visualizados no Instragram da @ongsrdoficial. Disponível em: https://www.instagram.com/p/C5OXfzyO-xQ/. Acesso em 30 mar. 2024.

[5] PADILHA; Maria José Sales. Crueldade com animais x violência doméstica contra mulheres: uma conexão real. Recife: FASA; 2011, p. 48. 

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