COLUNA PACHAMAMA - EDITORA LUAS
25 DE MARÇO DE 2024
Criança não é mãe!

“Vejamos, com a própria história da Igreja, como o Cristianismo bate o recorde da tirania, das torturas, do despotismo, levando a palma a todas as organizações sociais de todos os séculos e de todos os povos. […] na palavra de Salomão encontramos a nascente da odiosidade e do desprezo da igreja contra a mulher. […] Daí a fobia da igreja primitiva contra a mulher”

Maria Lacerda de Moura (1935) [1].

O avanço da extrema direita perpetua um rastro de sangue inocente. As novas cruzadas reeditam a sanha fascista com apoio incondicional do cristianismo. A frase de Maria Lacerda de Moura, escrita em 1935, vale para o passado, bem como para o presente cristão. Não são todas as linhas e vertentes do cristianismo que pregam a palavra de Jesus Cristo. Muitas delas pregam a palavra do capital, das grandes corporações e do patriarcado. Nas novas cruzadas, as mulheres estão na mira novamente. O ódio às mulheres atravessa a história do cristianismo, desde as fogueiras, onde eles queimaram mulheres em piras, até os dias atuais, em que os pentecostais tentam a todo custo empurrar as mulheres de volta ao reduto doméstico e à escravização da relação patriarcal.

O PL do estuprador ameaça os direitos das mulheres, das pessoas que gestam, das crianças e das famílias brasileiras! O Projeto de Lei 1904/24, proposto pelo deputado fascista Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), recebeu apoio incondicional do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). O projeto votado em regime de urgência, entre outras coisas, prevê a proibição do abordo após a 22ª semana para mulheres, pessoas com útero e crianças que engravidarem vítimas de estupro. O projeto teve apoio incondicional da bancada da bíblia. Caso haja o aborto a vítima passa a ser acusada de homicídio. A proposta beira à aberração e significa a materialização do ódio às mulheres.

A proposta equipara o aborto acima de 22 semanas de gestação ao crime de homicídio. O cerne da questão é dificultar o acesso ao aborto legal previsto em lei desde 1941. Porém, mesmo sendo lei, o acesso aos serviços é dificultado graças ao moralismo cristão que impera no atendimento ao público. Caso o projeto seja aprovado, as mulheres enquadradas nessa legislação poderão pegar uma pena de 20 anos de prisão, maior do que a prevista para os estupradores, que é de 2 a 10 anos. É justo que uma mulher, uma pessoa que gesta ou uma criança que foi violentada sexualmente seja criminalizada? É justo a vítima de um estupro ficar mais tempo presa do que o estuprador? A criminalização neste caso é uma segunda violência sobre um corpo violado. São inaceitáveis tais violências contra as mulheres, as pessoas que gestam e as crianças!

Os dados são alarmantes: em 2022, 74.930 casos de estupro foram registrados. Sabemos que esses dados são muito maiores, tendo em vista que muitas pessoas não registram o boletim de ocorrência em função da vergonha e do medo de seu algoz, que muitas vezes é um homem conhecido ou da própria família. Do percentual de estupros, aproximadamente 90% das vítimas são mulheres, sendo que cada 6 de 10 tinham no máximo 13 anos de idade, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública [2].

O número de gestações interrompidas legalmente em crianças e menores de 14 anos é bem inferior ao número de casos de estupro de vulnerável. Entre 2013 e 2022, foram registrados mais de 20 mil partos de crianças gestadas por outras crianças ou menores de 14 anos. São mais de 20 mil meninas que deixam a infância para viver a maternidade. Dessas, mais de 70% são negras. A política sexista e racista no Brasil vem ganhando contornos muito perigosos desde a ascensão do bolsonarismo. Vale lembrar que o ex-presidente, Jair Bolsonaro, ao comentar sobre as meninas venezuelanas, disse: “pintou um clima”.

Em entrevista ao canal do YouTube Paparazzo Rubro-Negro realizada no dia 14 de outubro de 2022, o ex-presidente faz uma fala que alude à apologia à pedofilia e exploração sexual de crianças, ele disse: “Eu parei a moto numa esquina, tirei o capacete e olhei umas menininhas, três, quatro, bonitas, de 14, 15 anos, arrumadinhas num sábado numa comunidade. E vi que eram meio parecidas. Pintou um clima, voltei. ‘Posso entrar na sua casa?’ Entrei. Tinham umas 15, 20 meninas sábado de manhã se arrumando. Todas venezuelanas. E eu pergunto: meninas bonitinhas de 14, 15 anos se arrumando no sábado para quê? Ganhar a vida”.

O que o ex-presidente chama de “ganhar a vida”, trata-se de exploração sexual de vulnerável, e ele, como representante do governo, fez alguma coisa para ajudar as meninas em sua inserção social e adesão aos estudos? Não! Ele reforçou a pedofilia, a exploração sexual de vulneráveis, e a tomada de posição foi apoio à exploração, pois, na sua perspectiva, “pintou um clima”.  A fala dele repercutiu negativamente ao redor do mundo, confirmando a tese de que o Brasil é um país perigoso para as mulheres, meninas e pessoas com útero e que são alvo dos pedófilos e dos estupradores.

A enquete popular no site da Câmara dos Deputados aponta que quase 90% da população brasileira é contra o PL do estupro. Além disso, instituições, artistas, organizações sociais se manifestaram contra. Mulheres de diversos municípios do Brasil saíram às ruas reivindicando o arquivamento do PL. Foi uma multidão marchando contra o retrocesso que é marcado pelo ódio às mulheres e pela naturalização da pedofilia e do estupro.

A Fiocruz emitiu uma nota na qual se posiciona contra o PL do estupro, afirmando que esse projeto representa retrocesso e ameaça à saúde de mulheres, crianças e pessoas com útero. Segundo informação do site: “estima-se que ocorram 820 mil casos de estupro por ano, sendo 80% de mulheres e apenas 4% detectados pelo SUS. Destaca-se nas notificações de violência sexual no SUS que as maiores vítimas são crianças e adolescentes negras. A gravidez resultante de estupro é uma tragédia social de grande impacto na saúde física e mental, assim como na vida de estudo, laboral e de lazer, especialmente quando a vítima é uma criança” [3].

A violência sexual é um câncer social neste país e significa que a vida das mulheres, das pessoas com útero e das crianças está em constante ameaça. Afinal, a naturalização da pedofilia e do estupro interessa a quem? Essa é uma pergunta que deve ser feita. Com certeza, precisamos vasculhar a fundo a questão da pedofilia e do estupro de vulneráveis dentro das igrejas e templos no Brasil a exemplo de outros países, sobretudo se pensarmos que o PL do estupro é um projeto da bancada evangélica. Qual o interesse dos evangélicos em punir a vítima e proteger os abusadores, estupradores e pedófilos?

Não podemos nos esquecer de que no dia 24 de abril de 2013 esteve na pauta da Comissão de Finanças da Câmara dos Deputados o projeto de lei nº 478/2007, que “dispõe sobre o Estatuto do Nascituro e da outras providências”. O projeto baseou-se na crença de que a vida tem início desde a concepção, ou seja, antes mesmo de o ovo ser implantado no útero, visando, assim, estabelecer os direitos dos embriões, os chamados nascituros. Ou seja, um projeto de lei brasileiro que visou garantir proteção do embrião e não da vida de mulheres, crianças e pessoas que gestam. Foi proposto, inicialmente, em 2005, pelos deputados Osmânio Pereira e Elimar Máximo Damasceno.

O assunto revela uma herança misógina, que é possível em uma sociedade patriarcal, capitalista, judaico-cristã moralista e hipócrita. A legislação trata da tentativa de dominação sobre o corpo e a sexualidade das mulheres, das crianças e pessoas com útero utilizando valores impostos através da culpa e do pecado. Esta pregação, falsa e oportunista, resulta em pressões e ações concretas no interior do poder legislativo.

O Estatuto do Nascituro, a “Bolsa Estupro”, a CPI do aborto e o PL do estupro formam um combo de estratégias cristãs dentro de uma política que, teoricamente, é laica e que está submetida a interferências das religiões cristãs e de suas concepções moralistas e hipócritas, tendo em vista que é justamente a religião com o maior número de casos de violência sexual contra mulheres, crianças e pessoas vulneráveis. A bancada composta por fundamentalistas, em sua maioria por deputados evangélicos, espíritas e católicos, está mais preocupada em controlar a vida das mulheres do que propriamente combater a violência sexual dentro de seus templos.

A revista Carta Capital, em 2023, divulgou uma matéria na sobre um grande movimento de denúncia de esquemas de pedofilia dentro da Igreja Católica. Foram registrados mais de 400 casos de abuso sexual na Convenção Batista do Sul [4]. Um estudo apresentado neste ano revelou milhares de casos de abusos sexuais de menores desde 1946 na Igreja Evangélica da Alemanha. “A investigação contabilizou mais de 2.200 casos, envolvendo 1.259 supostos abusadores. Mas segundo uma estimativa da equipe disciplinar que realizou a pesquisa, mais de 9.300 menores podem ter sido vítimas de abusos sexuais na Igreja Evangélica da Alemanha nas últimas décadas. Pela primeira vez um estudo traz números de abusos de menores dentro da Igreja Evangélica” [5].

Os casos de abuso sexual dentro das igrejas estão aparecendo, não basta lutarmos contra a legislação moralista imposta pela bancada da bíblia, precisamos pesquisar, investigar, discutir e, sobretudo, divulgar os casos de violência sexual dentro das igrejas, acobertados pelos padres, pastores e moralistas cristãos. Não é de hoje que essas instituições religiosas propõem medidas de ataque a integridade física e moral das mulheres. As novas fogueiras da inquisição estão acesas e precisamos nos unir para proteger as nossas crianças antes que elas virem alvo dos pedófilos cristãos e depois sentem no “banco dos réus”. Precisamos continuar a denunciar a pedofilia e o estupro dentro das igrejas cristãs. Desde o início do século XX que Maria Lacerda de Moura e tantas outras pessoas denunciam a tirania e a perversidade dos cristãos.

Criança não é mãe! Estuprador não é pai! 

Referências bibliográficas:

[1] MOURA, Maria Lacerda de. Fascismo: filho dileto da igreja e do capital. São Paulo: Entremares, 2018, p. 57-58.

[2] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário brasileiro de segurança pública. São Paulo: FBSP, 2023. Disponível em:  https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em: 24 jun. 2024.

[3] FIOCRUZ. Fiocruz divulga nota de posicionamento contra PL do aborto. Rio de Janeiro, 24 jun. 2024. Disponível em:  https://portal.fiocruz.br/noticia/2024/06/fiocruz-divulga-nota-de-posicionamento-contra-pl-do-aborto-0. Acesso em: 24 jun. 2024.

[4] ANJOS, Simony dos. Pedofilia e igrejas evangélicas, precisamos romper esse silêncio. Carta Capital, 13 set. 2023. Disponível em:  https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/pedofilia-e-igrejas-evangelicas-precisamos-romper-esse-silencio/. Acesso em: 24 jun. 2024.

[5 ] DAMASCENO, Márcio. Estudo inédito na Igreja Evangélica revela milhares de casos de pedofilia desde 1946. RFI_br. França, 26 jan. 2024. Disponível em:  https://www.rfi.fr/br/podcasts/linha-direta/20240126-estudo-in%C3%A9dito-na-igreja-evang%C3%A9lica-da-alemanha-revela-milhares-de-casos-de-pedofilia-desde-1946. Acesso em: 24 jun. 2024.

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A mulher que se identifica com mulheres, escrito pelo grupo Radicalesbians, Nova York, 1970. Traduzido por Natália Corbello e publicado no site da Editora Luas em abril de 2021