COLUNA ÉTICA ANIMAL - JUS ANIMALIS
11 DE JUNHO DE 2024
Como construir uma linguagem antiespecista?

A linguagem foi um dos temas feministas que ganhou repercussão internacional visando uma proposta inclusiva. De acordo com a gramática, quando existe pelo menos um elemento masculino, o gênero predominante é o masculino. Teóricas(os) buscam resolver esse impasse utilizando os símbolos: @, *, o/a. Na língua falada é complicado. Começaram a aparecer propostas de uma linguagem não sexista nos anos 1960. A sua finalidade quanto às questões de gênero é evitar opções léxicas que possam ser interpretadas como discriminatórias ou degradantes. A linguagem influencia poderosamente nas atitudes, nos comportamentos e nas percepções [1].

Na linguagem sexista está presente a crença que confere poder e superioridade ao homem e se manifesta em palavras e expressões que ocultam ou desqualificam o feminino. Um dos exemplos mais marcantes é o uso da palavra “homem” para designar todos os seres humanos, enquanto a palavra “mulher” designa apenas a fêmea da espécie. 

Alguns dicionários ainda propõem que a palavra mulher designa alguém da espécie humana depois da puberdade ou do casamento, deixando uma lacuna quanto ao que seria antes desses dois casos. Este é apenas um exemplo dentre tantos. Como este caso existem outros em que o masculino precede, oculta e domina o feminino, ou que a mulher recebe sua identidade em função da relação com o homem.

Em suma, a linguagem tem servido para maltratar as pessoas deficientes, as não brancas, as idosas, as crianças, os animais não humanos e as mulheres que, apesar de serem mais da metade da população mundial, continuam sendo anuladas, apagadas ou excluídas dos textos orais e escritos. É imperioso proceder à reescrita da gramática fazendo uma revisão da ordem das relações sociais de gênero. É importante ensinar as pessoas a falar, usando uma linguagem não sexista, paritária, inclusiva, não violenta e democrática [2].

A linguagem que nós usamos traduz o grau de desenvolvimento civilizacional em que nos encontramos. Ela é o reflexo do nosso sentir e agir, além disso, ela afeta diretamente a percepção da realidade. A linguagem sexista legitima comportamentos de desigualdade, desrespeito, discriminatórios, ao omitir retira importância, reduz à inexistência grande parcela da humanidade, o que reforça e promove a violência sexista. A linguagem, ao denominar as mulheres como propriedade dos homens, sustenta uma visão patriarcal do mundo [3].

Precisamos mudar a forma escrita e falada como modo de transformação para um mundo mais complexo e inclusivo. A luta pela palavra está chegando longe e questionando o especismo na linguagem. Por linguagem especista se entende toda expressão que descaracteriza os animais não humanos para torná-los seres matáveis. O apelo às metáforas animais como símbolo de inferiorização são outra forma de especismo semântico.

A escritora vegana Carol Adams aborda como a linguagem oculta os animais explorados pela indústria da carne. É uma estratégia que parece simples, mas que serve para transformar os seus corpos em produtos. Ela nomeou o processo conceitual no qual o animal desaparece de “referente ausente”. 

Animais em nome e corpo são feitos ausentes como animais para que a carne exista. Se animais estão vivos, eles não podem ser carne. Logo, um cadáver substitui o animal vivo para se tornar referencial ausente. Os animais são feitos ausentes por meio da linguagem, que renomeia cadáveres antes que consumidores(as) participem em comê-los(as). 

O referencial ausente nos permite esquecer o animal como uma entidade independente. O sangue no prato é desincorporado do animal, o qual ela ou ele um dia foi. O referencial ausente resulta e reforça o cativeiro ideológico: a ideologia patriarcal estabelece o padrão cultural de ser humano e de animal não humano [4].

Especismo estrutural é uma denominação em voga que entende o especismo dentro de um contexto social de exploração, com base em interesses materiais, econômicos e de dominação, na qual as elites globais obtêm vantagem. 

A manutenção deste estado de obliteração dos corpos dos animais não humanos serve ao modelo capitalista para transformar as vidas em objetos de consumo. A transformação das vidas em produtos de consumo é um dos processos que passa pela linguagem. Nuggets, bisteca, picanha, hambúrguer são o referente ausente que permite que o animal não humano desapareça durante o processo de objetificação dos seus corpos.

É graças a este modelo especista que surgem as metáforas animais para desqualificar as pessoas. Um exemplo recorrente na politica brasileira foi objeto de estudo de Daniela Rosendo e um grupo de pesquisadores(as). O grupo publicou o artigo intitulado: Contribuições para a defesa de uma linguagem antiespecista, o caso do termo “gado” na política brasileira. A terminologia passou a ser uma forma de insulto após o acirramento da polarização na política nacional. O termo gado foi descontextualizado de seu sentido original e transformado para caber dentro dos valores humanos.

Segundo o artigo, “vacas e bois são gregários, o que quer dizer que apreciam e precisam viver em grupo. Costumam ter organização social bem definida e se sentem desesperados que se veem separados de seu grupo. Criam vínculos internos de amizade entre si, são inteligentes, cuidadosos e gostam de interagir ludicamente. O fato de sua organização gregária ter se tornado um símbolo social pejorativo indica algo importante sobre as relações humano-bovino: ainda temos muito a aprender, sobre eles e sobre nós” [5]. 

A transformação da terminologia, que indica uma forma de organização social em algo pejorativo, demonstra o nível de desconexão entre humanidade e animalidade. Desde o momento que há uma desconexão o problema se agrava. Vemos que a humanidade, ao assumir uma postura especista, deixa de fazer uma autoanálise de sua forma de interação social, delegando as outras espécies a sua falha e fazendo vista grossa para os problemas sociais derivados do distanciamento entre a humanidade e a vida planetária, que inclui todas as outras espécies.

Ao nomear as mulheres de vaca, galinha, porca, égua ou outras espécies os homens pretendem desqualificá-las e distanciá-las da humanidade consolidada pela racionalidade instrumental. O patriarcado influenciou algumas ideias sobre a natureza humana, não raro associando as mulheres à ideia de uma natureza ligada à fragilidade, ternura e docilidade, e em alguns momentos associadas aos animais, pois não eram aptas aos pensamentos elevados. 

As mulheres, então, são assim nomeadas como vaca, galinha, égua, potranca, cachorra, como formas de insulto. Essa nomeação é um dispositivo humanístico, conforme já propomos, à medida que ele cria um distanciamento entre humanidade e animalidade.

Um trecho do poema Aviso da lua que menstrua, de Elisa Lucinda, brinca com o insulto e ressignifica, transformando em algo positivo:

[…] Não despreze a meditação doméstica/É da poeira do cotidiano/Que a mulher extrai filosofando/Cozinhando, costurando e você chega com mão no bolso/Julgando a arte do almoço: eca!…/Você que não sabe onde está sua cueca?/Ah, meu cão desejado/Tão preocupado em rosnar, ladrar e latir/Então esquece de morder devagar/Esquece de saber curtir, dividir./E aí quando quer agredir/Chama de vaca e galinha./São duas dignas vizinhas do mundo daqui!/O que você tem pra falar de vaca?/O que você tem eu vou dizer e não se queixe:/Vaca é sua mãe, de leite./Vaca e galinha…/Ora, não ofende. Enaltece, elogia:/Comparando rainha com rainha/Óvulo, ovo e leite/Pensando que está agredindo/Que tá falando palavrão imundo. /Tá, não, homem. /Tá citando o princípio do mundo! [6].

A arte de Elisa Lucinda nos faz pensar nestas possibilidades de recriar o mundo e dar novas sentidos para o que nos circunda. As palavras não são neutras, elas podem diminuir ou até mesmo invisibilizar as pessoas ou grupos sociais. As palavras podem, também, criar mundos possíveis e pontes para um futuro onde o ser humano seja reintegrado à vida planetária. 

É possível respondermos à pergunta que inicia este texto? Como construir uma linguagem antiespecista? O caminho é longo, a humanidade precisa se reconciliar com a Terra e toda a vida que aqui habita. Tudo é natureza. O ser humano também é natureza e é terra. O ser humano depende da terra e não o contrário. Fica o convite para a renovação do pensamento, da linguagem e para o despertar telúrico. 

Referências bibliográficas

[1] UNESCO. Redação sem discriminação. São Paulo: Editora textonovo, 1996.

[2] LESSA, Patrícia. A fabricação dos tecno-bio-corpos e a produção do sexismo na  linguagem. Relatório de Pós-Doutorado, Programa de Pós-graduação em Letras, Niterói, 2011. 

[3] LESSA, Patrícia. Um novo universal? Coluna Pachamama, Editora Luas, set. 2023. Disponível em: http://editoraluas.com.br/2023/09/. Acesso em: mai. 2024.

[4] ADAMS, Carol J. A política sexual da carne: a relação entre carnivorismo e a dominância masculina, São Paulo: Alúde, 2012.

[5] ROSENDO, Daniela; DUARTE, Denis; OLIVEIRA, Fabio (et. al.). Contribuições para a defesa de uma linguagem antiespecista: o caso do termo “gado” na política brasileira. Revista Latinoamericana de Estudios Críticos Animales, a. X, v. 1, jun. 2023, p. 188. Disponível em: https://revistaleca.org/index.php/leca/article/view/422. Acesso em: mai. 2024.

[6] LUCINDA, Elisa. Aviso da lua que menstrua. 1993. Disponível em: https://www.geledes.org.br/elisa-lucinda-aviso-da-lua-que-menstrua/. Acesso em: mai. 2024.

Manifesto Feminista nº01, Editora Luas

“Quando eu escrevo, a tinta vermelha da minha caneta não é sangue, é a lava de um vulcão!” – Patrícia Lessa.

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Conheça também

Manifesto Feminista nº03, Editora Luas

A mulher que se identifica com mulheres, escrito pelo grupo Radicalesbians, Nova York, 1970. Traduzido por Natália Corbello e publicado no site da Editora Luas em abril de 2021