“A grandeza de uma nação pode ser julgada pelo modo que seus animais são tratados”
(Mahatma Gandhi)
No início de 2024 ativistas ao redor do mundo começaram a noticiar o abandono de aproximadamente 16 mil animais em um navio na costa da Austrália Ocidental. O cargueiro M.V. Bahijah interrompeu uma viagem pelo Mar Vermelho transportando cerca de 14 mil ovelhas e 2,5 mil bovinos. No dia 5 de janeiro deste ano a embarcação deixou o porto australiano com destino à Israel. Na primeira quinzena do mês, devido aos conflitos no Oriente Médio, o navio retornou. O barco continuou em alto mar, depois de um mês, aguardando a decisão judicial sobre o desembarque dos animais.
Desde meados do final de 2023, o conflito no Oriente Médio se estendeu para o mar. O mundo inteiro sabe que os navios estão impedidos de circular livremente em função do agravamento da guerra. Fica a questão: se o mundo inteiro já sabia que os navios estão impedidos de circularem na região de conflitos bélicos, qual motivo para expor 16 mil animais não humanos ao risco de morrerem agonizando dentro do navio? Podemos, de forma simplificada, responder: especismo.
O especismo é a crença na qual a vida dos animais não humanos não deve ser levada em consideração, ou melhor dizendo, em um mundo capitalista todas as vidas não humanas são mercadorias, são coisas, que podem ser usadas para o livre comércio sem nenhum escrúpulo. São coisas que podem ser descartadas ao bel prazer dos humanos. O caso é emblemático e por longo tempo será lembrado como um dos mais atrozes casos de maus-tratos aos animais transportados vivos através de navio.
As condições climáticas na região são de ondas de calor, além disso, as ovelhas e bovinos estão vivendo sobre as próprias fezes há cerca de um mês. A proliferação de doenças é comum em condições extremas. São 16 mil vidas agonizando, abandonadas em alto mar. Por mais que alguns noticiários informem que há uma equipe de medicina veterinária empenhada em monitorar a situação das 16 mil vítimas da maldade humana, não existe vida saudável em gaiolas cobertas de fezes. A quantidade de comida e de água foi calculada para o período da viagem, que já extrapolou. A globalização da indiferença especista só foi possível fincando raízes no antropocentrismo e no androcentrismo.
Alicia Puleo nos ajuda a pensar em uma crítica ecofeminista, na qual o androcentrismo se apresenta como uma tentativa de superação do antropocentrismo. Se havia um desgaste do conceito de antropocentrismo por sua crença exacerbada na humanidade como centro irradiador da vida planetária, hoje vemos uma avalanche de investidas masculinistas. Trata-se, para a autora, de uma globalização andro-antropocêntrica [1]. Para as pessoas que defendem o veganismo como superação de uma ordem global antropocêntrica, o andro-antropocentrismo representa um declínio para a vida planetária.
A perspectiva da globalização andro-antropocêntrica vai contra todas as bandeiras erguidas ao longo das lutas ecofeminista e ecoveganas, tais como, a ecojustiça para as mulheres, crianças e animais não humanos, a soberania alimentar, a agroecologia, a desaceleração industrial, a valorização dos produtos regionais, o veganismo popular etc. Todas estas bandeiras são coerentes com a urgência colocada pela emergência climática atual. Na contramão, simbolicamente, a luta desenfreada pelo poder patriarcal é a do excesso, do lucro acima da vida, da morte em escala industrial, da guerra e da destruição.
Moira Millan, indígena mapuche da Argentina, ao abordar o que ela nomeia de terricídio, elabora uma análise crítica ao processo de industrialização de carne e derivados. Para ela, o resultado é a “carne torturada”. Um produto derivado do sofrimento dos animais não humanos, exterminados em escala industrial, assim como, das pessoas envolvidas no trabalho “sujo”, no trabalho que envolve matar e limpar o sangue derramado [2].
O desfecho da nau do gado agonizante não será silencioso! Organizações de proteção e de direitos dos animais ao redor do mundo estão pressionando o governo australiano. Enquanto isso, Israel, que prossegue em sua sanha genocida, quer mais sofrimento, quer que a Australia envie os animais por uma rota mais longa, que levaria mais de um mês. Devemos lembrar que foi Éliseé Reclus, anarquista vegetariano e antivivisseccionista, quem afirmou que: “não é uma digressão mencionar os horrores da guerra em conexão com o massacre de gado e os banquetes para carnívoros. A dieta corresponde bem aos modos dos indivíduos. Sangue chama sangue” [3].
O sofrimento de 16 mil animais, enclausurados em um navio, está sendo ignorado pelas autoridades e empresários em nome do lucro e do consumo humano. Mas, ativistas do mundo estão mobilizados e mobilizadas fazendo pressão para que a Austrália desembarque os animais e, sobretudo, para que o mundo conheça a crueldade do transporte de cargas vivas.
A Plataforma Anti-Transporte de Animais Vivos (PATAV), de Portugal, está fazendo uma campanha virtual contra o reembarque dos animais para Israel. Na página da organização vemos imagens dilacerantes de bovinos e ovinos transportados de Portugal para Israel. Segundo a PATAV “os vídeos revelam a realidade chocante deste negócio ao mostrar animais – de origem nacional – amontoados, sem espaço, feridos e doentes. Os vídeos evidenciam ainda graves e reiteradas violações à legislação nacional e comunitária” [4]. O caso foi denunciado em Portugal, que possui leis que regulamentam o transporte de animais vivos e ao Parlamento Europeu, responsável por investigar violações à legislação europeia.
A nau do gado agonizante faz referência à nau dos loucos tematizada por pintores e escritores. Um dos autores mais conhecidos na divulgação das formas de excluir os loucos e as pessoas indesejáveis foi Michel Foucault. Além disso, Bosch, Sebastian Brant e Oskar Laske imortalizaram a cena dos navios à deriva levando as pessoas que incomodavam a sociedade capitalista europeia nascente. Matar à mingua, com fome, sede e à deriva não é novidade deste tempo.
Lutar pela vida das vidas sem voz é tarefa árdua! Esperamos que haja um desfecho favorável às 16 mil vítimas da ganância humana. Que o navio possa regressar para a Austrália. Esperamos ainda que o caso reverbere e torne mais fortes as ações contra o transporte de animais vivos.
Referências bibliográficas
[1] PULEO, Alice. Claves ecofeministas: para rebeldes que aman a la tierra y a los animales. Plaza y Valdés Editores: Madrid, 2019.
[2] FESTIVAL PROYECTO BALLENA. Entrevista com Moira Millan. 22 mai. 2012. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1J5Ad5nCCwU.
[3] MOTA, Ana Gabriela; SANTOS, Kauan Willian dos (org.). Libertação animal, libertação humana: veganismo, política e conexões no Brasil. Juiz de Fora/MG: Editora Garcia, 2020, p. 37.
[4] Plataforma Anti-Transporte de Animais Vivos. Disponível em: https://patav.weebly.com/
“Quando eu escrevo, a tinta vermelha da minha caneta não é sangue, é a lava de um vulcão!” – Patrícia Lessa.
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A mulher que se identifica com mulheres, escrito pelo grupo Radicalesbians, Nova York, 1970. Traduzido por Natália Corbello e publicado no site da Editora Luas em abril de 2021