COLUNA ÉTICA ANIMAL - JUS ANIMALIS
07 DE NOVEMBRO DE 2023
Os caminhos de fé e do amor à vida

A Terra vive uma época de grande ebulição e transformação. O colapso climático somado ao avanço das guerras acelera a destruição planetária. Micheline Coêlho, pesquisadora da USP, aborda a questão dos extremos. Por um lado, as elevadas temperaturas causam incêndios, por outro lado vemos o aumento do frio e das tempestades [1]. São nestes momentos que algumas pessoas se amparam na fé e na espiritualidade na busca de conforto. Por isso, nesta pequena reflexão, vamos pensar a espiritualidade a partir da consideração com os animais não humanos. 

Desde a antiguidade, o pensamento filosófico questiona a nossa relação com as outras espécies. Maria Castro estudou o pitagorismo para pensar a relação entre o vegetarianismo e as suas interfaces com a Ética Animal. Ela escreveu: “Pitágoras […] vedava o consumo de carne a si mesmo e a seus discípulos, pois os animais têm o direito de partilhar conosco a existência” [2]. Na escola filosófica pitagórica havia uma ligação entre os cuidados com o corpo, com a alma e com o pensamento. Para os seus discípulos alcançarem uma elevação de consciência, eles deveriam rever a sua relação, não só com os alimentos, mas com o seu entorno. A autora afirma que: ““Pitágoras ‘não só não consumia carne alguma como também evitava a companhia de açougueiros e caçadores’. Empédocles condenava o consumo de carne veementemente, como próximo ou equivalente ao canibalismo” [3]. 

A escola pitagórica serviu como modelo na modernidade para pensar a relação entre a alimentação vegetariana e a busca espiritual como contrapartida aos modelos competitivos e predatórios da industrialização e do capitalismo, baseados na exploração massificada. Para Frans de Waal: “muitos animais sobrevivem cooperando e compartilhando os recursos, e não aniquilando-se uns aos outros ou conservando tudo para si mesmo” [4]. Este senso de cooperação e de compartilhamento, baseado na observação sistemática das outras espécies, pode nos servir de bússola para a construção de caminhos alternativos ao do capitalismo e do imperialismo. A humanidade poderá ganhar muito se começar a observar a vida planetária, não mais sob o prisma da exploração e do acúmulo de recursos, mas sob a ótica da solidariedade e da empatia.

Algumas religiões servem ao modelo predatório ao impor a sua fé e instigar o ódio e o desprezo às pessoas que não pactuam da mesma crença. O que esperar destas vertentes religiosas com relação aos animais não humanos? Muitas tradições ainda cultuam o sacrifício animal em suas festas tradicionais. Muitos cultos são banhados de sangue inocente e de banquetes onde servem os corpos imolados. Neste sentido, a escola pitagórica colocava a prova a questão espiritual: como buscar um caminho de fé, de paz e de fraternidade banhando-se do sangue inocente? Como vimos, para Pitágoras, nem mesmo a companhia de açougueiros e de caçadores era indicada, já que suas escolhas andavam em sentido oposto. Trata-se de uma questão de coerência entre o pensamento e a ação. 

A escola filosófico-espiritualista criada por Rudolf Steiner (1861 – 1925), no início do século XX, propunha a relação com o vegetarianismo, o antivivisseccionismo e o cuidado com os animais não humanos como um dos fundamentos para a construção de princípios educacionais baseados na solidariedade e na elevação das consciências. Ele preconizava que as pessoas se alimentam “de acordo com o grau de sua evolução espiritual. Não é por isso de espantar que alguns homens permaneçam ainda no estágio da fera ou do antropófago, incapazes de outra alimentação que não seja a que lhes converte o estômago em necrotério” [5]. Neste sentido, é importante o questionamento: o seu estômago é um necrotério ou um jardim? Se corpo e alma participam ativamente da busca espiritual, como esperar a elevação das vibrações e a sintonia com experiências místicas mantendo uma alimentação baseada no carnivorismo e no derramamento do sangue inocente? 

O vegetarianismo é recomendado por muitas religiões e escolas místico-filosóficas. Alguns nomes são citados por Roberto das Neves: “Buda, Lao Tsé, Pitágoras, Platão, Diógenes, Sócrates, Epícteto, Epicuro, Ovídio, Plutarco, Tertuliano, São João, Crisóstomo, São Clemente de Alexandria, Leonardo da Vinci, São Francisco de Assis, Cervantes, Spinoza, Descartes, Darwin, Voltaire, Rousseau, Tolstói, Elisée Réclus, Ruskin, Lázaro Luíz Zamenhof, Thoreau, Albert Shweitzer, Albert Einstein, Jean Rostand, George Bernard Shaw, Han Ryner, Émile Armand, Maria Lacerda de Moura, Annie Besant, Leadbeater, Krishnamúrti, José Oiticica, Alex Carrel etc” [6]. Estes são alguns dos nomes de pensadores e pensadoras que não se renderam ao materialismo e buscaram um caminho espiritual livre da exploração dos animais não humanos. 

Leon Tolstói (1828 – 1910) foi um anarquista cristão que, ao visitar um abatedouro, tornou-se vegetariano e começou a escrever sobre a libertação dos animais. Entre os cristãos, as ordens monásticas Trapistas, Cartuxos e Cameldulenses indicavam a abstenção de carne com a finalidade de aumentar a força da vontade em detrimento do corpo físico e dos desejos. Assim, também, os Adventistas do Sétimo Dia são aconselhados ao vegetarianismo. Alguns tornam-se veganos, outros lacto-vegetarianos ou ovo-lacto-vegetarianos. Budistas, Hindus, Messianicos, Hare Krishnas, Taoístas, Jainistas dentre outras ordens religiosas preconizam o vegetarianismo como forma de purificação física e espiritual. Vale ressaltar, muitas destas ordens religiosas não estão propondo o vegetarianismo ou veganismo em benefício das outras espécies, mas sim, em benefício humano. Como forma de purgar o corpo humano das energias da carne de seres tidos como inferiores. 

É importante se fazer um estudo detalhado de cada crença para entender as suas peculiaridades. Por exemplo, os jainistas acreditam que, se respeitarem todas as formas de vida, eles terão uma alma eterna, perfeita e santa. Eles são rigorosamente vegetarianos e adotam um estilo de vida completamente voltado para o desapego. É uma religião que respeita as outras formas de vida.

Alguns grupos religiosos, como os budistas e hindus, acreditam em ciclos de criação, de vida e também na reencarnação. Muitas são as diferenças entre as práticas cristãs, budistas, hindus. Uma questão é a própria visão da divindade nas religiões de ordem monoteístas, politeístas e panteístas. Para algumas linhas mais radicais do cristianismo, os politeístas e os panteístas são formas de paganismo e, por isso, são demonizados. 

O debate cresce à medida que hoje percebemos a multiplicação das religiões, existem vários cristianismos, assim como, existem vertentes do budismo e do hinduísmo. O Hinduísmo, o Islamismo, a Wicca, os cultos à Grande Deusa formam um emaranhado de crenças e formas de culto e de estudo dos efeitos paranormais não explicados pela ciência e das relações da humanidade com a vida planetária. 

A Sociedade Teosófica, criada na Inglaterra por Helena Blavatsky (1831 – 1891) foi inspirada no Budismo, no Hinduísmo e no Cristianismo. Dentre seus expoentes destacam-se Annie Besant e Jiddu Krishnamurti. Besant (1847 – 1933) foi feminista, vegetariana, antivivisseccionista. Com o falecimento de Blavatsky, ela se tornou a presidente da Sociedade Teosófica até a sua morte, na Índia. Ela foi uma líder espiritual que se tornou vegetariana em função de sua consideração pela vida dos animais não humanos. 

A atual preocupação com as outras espécies vai além da materialidade das experiências terrestres, como podemos ver nas obras de Jean Prieur, L’Âme des animaux e de Paulo Neto, A Alma dos animais. Para estes dois pensadores espíritas a reencarnação é comum à maioria das espécies de animais. Prieus escreveu: “se por alma entendemos a coragem, os sentimentos elevados, os instintos generosos de uma individualidade considerada do ponto de vista moral, sim, os animais têm alma” [7].

O humanismo é colocado à prova nas divindades cujo amálgama combina pessoa humana e não humana, como Ganesha, divindade do intelecto, da sabedoria e da fortuna na tradição hindu e védica. Na Antiguidade, os cultos à deusa Bastet simbolizavam fertilidade e proteção às mulheres, ela era representada por uma mulher com cabeça de gata, carregando em uma das mãos o sistro, um instrumento musical sagrado. Ao considerar as outras espécies dentro um panteão divino, eleva-se o respeito e a empatia para além do mundo humano.

Com esta pequena reflexão, instigamos as pessoas a pensarem se nos seus caminhos de fé, de crença e de espiritualidade, o amor à vida ainda está circunscrito à humanidade. Caso as outras espécies e a vida planetária não sejam consideradas merecedoras de respeito e de direito à existência, pode ser que a humanidade esteja muito apegada ao mundo material, ao lucro e aos valores civilizatórios que nos levaram ao colapso. A humanidade continuará a caminhar a passos largos para o autoextermínio enquanto não tiver a humildade de aprender com as outras espécies. 

Referências bibliográficas

[1] COÊLHO, Micheline. Colapso climático. Instituto Humanitas Unisinos, Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/632935-desequilibrio-do-clima-nao-sabemos-o-que-acontecera-o-estudo-da-natureza-e-probabilistico-entrevista-especial-com-micheline-coelho.

[2] CASTRO, Márcia Marques Marinho. Com o coração na boca: pitagorismo, vegetarianismo e interfaces com a Ética Animal. Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2019, p. 19

[3] Ibidem, p. 84.

[4] WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma era mais gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 19.

[5] NEVES, Roberto das. Entre colunas. Rio de Janeiro: Germinal, 1980, p. 222.

[6] Ibidem, p. 214.

[7] Tradução nossa do original: “si l’on entend par âme le courage, les sentiments élevés, les instincts généreux d’une individualité considéreé du point de vue moral, oui, les animaux ont une âme”. PRIEUR, Jean. L’âme des animaux. Paris: Éditions Robert Laffont, 1986, p. 9.

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Manifesto Feminista nº03, Editora Luas

A mulher que se identifica com mulheres, escrito pelo grupo Radicalesbians, Nova York, 1970. Traduzido por Natália Corbello e publicado no site da Editora Luas em abril de 2021