COLUNA ÉTICA ANIMAL - JUS ANIMALIS
16 DE DEZEMBRO DE 2023
Neste natal não coma o presépio!

Desde quando o Natal passou a ser um momento de fervor consumista? O que resta de cristão na festividade? Desde quando existe um ritual de matança de consumo de perus para a ceia natalina? Alguns animais não humanos aparecem na cena representada no presépio, que é a encenação do nascimento do Cristo, onde figuram: Jesus, Maria e José, um boi e um jumento, três reis magos que levam ouro, incenso e mirra, pastores e ovelhas. Entre as famílias cristãs é comum ver réplicas do presépio adornando suas casas neste período do ano. Na cena há um encontro interespécies para esperar a chegada do nazareno. Na ceia há um fraturamento neste encontro cenográfico à medida que vemos animais não humanos mortos sobre a mesa para alimentar os humanos. A cena do nascimento e a ceia comemorativa deste destoam na perspectiva do local ocupado nesta relação interespécie.

O Natal sofreu transformações ao longo da história e hoje mistura antigas tradições pagãs com um consumismo desenfreado. As compras, os presentes, os enfeites, as festas, a matança de bichos, principalmente perus, formam um emaranhado de ações que destoam da liturgia e dos rituais cristãos e pagãos. Por que celebramos o Natal em dezembro?

Entre os dias 21 e 22 de dezembro acontece o solstício de inverno no Hemisfério Norte na noite mais longa do ano. Estas datas são comemoradas desde os tempos sem princípio. Antigos rituais celebravam os solstícios com ritos de fertilidade, festivais relacionados com o fogo, festas em agradecimento pela colheita e oferendas às divindades. Na mesma época do ano, os antigos romanos festejavam a Saturnália, festival em que eles ofereciam presentes entre si, mas também trocavam os papéis sociais, uma mistura entre o Natal e o Carnaval. Acredita-se que as festividades de 25 de dezembro sejam um misto desta ritualística antiga.

Segundo Guillermo Alteres, “a data do Natal foi fixada em 25 de dezembro pelo imperador Constantino, porque nesse dia era celebrada a grande festa solar em Roma” [1]. Foi durante o seu império que o cristianismo se transformou na religião de Roma. Ele aproveitou o antigo festival do Dia do Nascimento do Sol Invicto e realizou uma fusão do culto solar com o culto cristão. Elementos pagãos, cristãos e capitalistas forjaram a atual celebração.

A data de nascimento de Jesus não é comprovada por documentação histórica, disputas de narrativas existem sem que se chegue em um consenso. Seu nascimento é um grande mistério envolvido em muitas histórias e fabulações. Na perspectiva da história do cristianismo existem dados relacionados à sua morte, dizem que ele foi um profeta crucificado por Roma em Jerusalém, porém, não há registros sobre o seu nascimento. Para além da imagem Crística, profética e religiosa uma figura bizarra tomou a cena nas festividades natalinas ocidentais: um homem idoso de barba branca vestindo um modelito vermelho. 

O Papai Noel começou a aparecer nas propagandas da Coca-Cola no século XIX. O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss escreveu um texto intitulado O suplício do Papai Noel. Para o autor, havia uma lição de casa a ser seguida: as boas ações merecem uma recompensa, o presente de Natal. O autor nos conta que a chegada desta novidade norte-americana na Europa foi tratada como um mau pressentimento, ele escreve: “as festas de Natal de 1951 ficarão marcadas na França por uma polêmica que encontrou grande repercussão junto à imprensa e à opinião pública e introduziu um tom de inusitado azedume no clima geralmente alegre dessa época do ano. Há vários meses as autoridades eclesiásticas, na voz de alguns prelados, já manifestavam sua desaprovação à importância cada vez maior que as famílias e os comerciantes vinham dando à figura do Papai Noel. Elas denunciavam uma ‘paganização’ do dia de Natal, desviando o espírito público do sentido propriamente cristão dessa comemoração, em favor de um mito sem valor religioso” [2].

A outra “inovação” na festa foi o consumo de peru, que é uma ave originária das Américas. Vista como uma “alimentação exótica”, ao contrário do Papai Noel, teve ampla aceitação e foi popularizada pela elite europeia. Segundo a Vegazeta: “no Brasil, mais de oito milhões de perus são mortos para a celebração do Natal, segundo dados da BRF. São muitas vidas ceifadas para saciar o ‘paladar natalino’. Geralmente a ave, que poderia viver por dez anos, é morta com pouco mais de dois meses, e peso que varia de três a seis quilos, considerado o ideal para o Natal’ [3].

Alguns dados são importantes para repensar a nossa relação com a festividade do nascimento de Jesus Cristo, que pregou a paz, o amor e expulsou os vendilhões do templo. Oposto ao ensinamento de paz, de amor e de não consumismo, vemos a crueldade chegando aos pratos em uma cerimônia que deveria ser pacífica. 

Para a alta produção chegar às mesas existe um longo processo. O procedimento envolve o armazenamento dos perus em galpões sem janelas com mais de 20 mil aves aglomeradas, muitas não alcançam a comida e a água e morrem. O corte e remoção do bico são estratégias criadas em função da superlotação que causa agressividade e canibalismo. Além disso, os animais ficam propensos a uma série de doenças, como gripe aviária, rinotraqueíte e infecções bacterianas. A alta lotação dos galpões ainda causa estresse, lesões e envolve muita dor. Eles são mortos entre nove e vinte e uma semanas de idade, mas a vida natural de um peru é de até 10 anos. Nas esteiras da morte eles são pendurados por uma perna e, de cabeça para baixo, são arrastados até terem suas cabeças cortadas. 

No livro Escrever é muito perigoso, a polonesa Olga Tokarczuk afirma que os seres humanos podem contar com a cultura e com a religião para aliviar seu sofrimento, para as outras espécies “não há consolo nem alívio, porque não existe salvação que o espere”; o sofrimento “é absoluto, total” [4]. A transformação da comemoração do nascimento de um profeta que pregou a paz e o amor em um evento de consumismo descontrolado deve ser questionada. “Não matarás!” é um preceito cristão que se choca com o “paladar natalino”. 

Que as mensagens de amor, paz e valor à vida cheguem aos corações de mais humanos, sobretudo, o entendimento de que todas as vidas importam. Esperamos que a ceia de Natal seja reflexo da cena do nascimento de Jesus Cristo que retrata a paz, o respeito e o amor interespécie. 

Referências bibliográficas

[1] ALTARES, Guillermo. A origem do Natal: uma luta entre elementos religiosos e pagãos. Madri, 19 dez. 2017. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/08/cultura/1512736033_713696.html. Acesso em: 22 nov. 2023.

[2] LÉVI-STRAUSS, Claude. O suplício do Papai Noel. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

[3] ARIOCH, David. Milhões de perus são mortos para o Natal. 25 nov. 2018. Disponível em: https://vegazeta.com.br/milhoes-de-perus-sao-mortos-para-o-natal/. Acesso em: 22 nov. 2023.
[4] TOKARCZUK, Olga. Escrever é muito perigoso. São Paulo: Todavia, 2023.

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