COLUNA PACHAMAMA - EDITORA LUAS
28 DE MAIO DE 2024
Moira Millán e a luta contra o terricídio em Abya Yala

“El verano se acercaba y con él, el tiempo de las ofrendas y el compromiso de renovar los votos de armonía con la mapu” [1]

Escrever sobre a indígena Moira Millán é um desafio, ainda sabemos pouco sobre a sua história e suas batalhas. Ela é uma mulher originária da nação Mapuche, nasceu em 20 de agosto de 1970, em Maitén, província de Chubut, na Argentina. Seus familiares trabalharam como ferroviários. Moira é uma weychafe (guerreira na língua mapudungun) e integra o Movimento de Mulheres Indígenas pelo Bem Viver. Desde a década de 1990 ela tem se mobilizado em lutas pelos direitos do seu povo, contra o terrícidio e o feminicídio de suas irmãs indígenas.

Na cosmovisão do povo Mapuche, os rios, as montanhas, as florestas, os animais não são recursos ou propriedades, são parte de um todo que compõe a Terra. Os povos originários partem de uma outra epistemologia, não colonial e não eurocentrada; nela não há espaço para a dualidade entre terra e humanidade. Tudo é natureza. O ser humano também é natureza e é terra. O ser humano depende da terra e não o contrário. A terra iria prosperar sem o ser humano, caso não haja uma mudança de comportamento e na relação corpo/território. A destruição do território é a destruição dos corpos humanos.

Moira Millán nos lembra que o colonizador estabeleceu fronteiras no território que já era habitado. Entre as formas de dominação estava a proibição de rituais ancestrais, o roubo das terras indígenas, a subjugação dos povos e a imposição de uma maneira de conceber e estar no mundo. O modo de vida acumulativo, gregário e racista gerou um mundo doente, com pessoas e territórios adoecidos por uma forma de ocupação altamente predatória e destrutiva. Exemplo disso, para ela, são as criações de animais para abate e os abatedouros onde se produz “carne torturada”. São animais e trabalhadores da indústria da carne que vivenciam violências diárias que resultam na morte em massa e na debilidade física e emocional.

Para ela é necessário o despertar telúrico. A humanidade precisa aprender sobre a visão existencial dos povos originários, que não fazem distinção entre animais, rios, cachoeiras, montanhas, terra, vento e seres espirituais. A floresta é uma entidade viva e pulsante, consciente e detentora de direitos. As plantas são sagradas e guardam os segredos da medicina tradicional. As mulheres são guardiãs desses segredos milenares repassados às novas gerações através da oralidade.

Moira impulsionou o Movimento de Mulheres Indígenas pelo Bom Viver, que questiona o mito da Argentina branca através da invisibilização dos povos originários. O modelo de democracia ocidental, para ela, é assentado no racismo e no terricídio. Moira diz que é necessário construirmos uma Terracracia, onde a terra seja o centro de nossas preocupações e ações. Neste modelo não cabe a Universidade tal como a concebemos atualmente, pois, para uma cosmovisão, deveria haver uma Pluriversidade, para agregar outras culturas, povos e epistemologias.

Além disso, é preciso enfatizar que, antes do feminismo, os povos mapuche já eram antipatriarcais. Eles tinham uma perspectiva política, ideológica e filosófica oposta à do colonizador. Desde suas origens, havia uma perspectiva de equidade, espiritualidade e respeito à Terra. A militarização dos territórios responde aos interesses internacionais do imperialismo e do patriarcado.

 Maria Eugenia García Nemocon, Ana-Marcela Montanaro e Luisa Maria Ocaña Muñoz no livro Eco-feminismos decoloniales: abrir miradas afirmam que: “los feminismos decoloniales son aportaciones dispersas en la geografía, pero que están situadas geopolíticamente en el Tercer Mundo. Son parte de las epistemologías del sur, siendo los conocimientos geopolíticamente inspirados en los sures globales contrapuestos a las epistemologias dominantes de los nortes globales” [2].

Concorda com as autoras Aimé Tapia. Ela é autora da obra Mujeres indígenas en defensa de la tierra e nos instiga a pensar em alguns aspectos centrais dos feminismos indígenas, tais como a confluência de posturas críticas, a relevância das tarefas de reprodução, a recuperação de categorias indígenas, a relação entre os corpos e os territórios, a vinculação dos corpos com a biodiversidade da Terra e o fortalecimento dos processos organizativos indígenas que constituem sua capacidade para construir o comum sem renunciar a diversidade.

Para ela, os feminismos indígenas latino-americanos são portadores de uma episteme não ocidental que se fundamenta na comunidade, no respeito à igual dignidade para todos os seres vivos e em valores de reciprocidade e interdependência [3].

Uma das grandes contribuições de Moira está na luta contra o terricídio que, em sua cosmovisão, parte do pressuposto da luta pela vida planetária. O conceito de terricídio foi criado por Moira e suas companheiras do Movimento de Mulheres Indígenas pelo Bem Viver e pode ser definido como o assassinato dos ecossistemas, o extermínio dos povos que o habitam e, também, significa a destruição dos ciclos que regulam a vida na terra, ao que chamamos ecossistemas perceptíveis.

Patrícia Karina Vergara Sanches em seu livro Siwapajti: medicina da mulher, memória e teoria de mulheres concorda e afirma :

“Minha suspeita é de que um dos últimos bastiões dos conhecimentos originários é a certeza da terra como entidade viva. Na generalidade das populações racializadas, entre os saberes, entre as lendas, entre os costumes, no centro das mais poderosas cosmovisões, há um sentido comum, uma pauta que se repete: ‘a terra não nos pertence, nós que pertencemos a ela’. A terra é a nossa ancestral direta. É ela quem nos dá vida, água, casa e alimento. Então, quem habita hoje essa terra, esse lugar concreto nela, está cuidando desse território porque, antes, o cuidaram outras mulheres para nós” [4].

O livro El tren del olvido, de Moira Millán, é o primeiro romance escrito por uma mulher mapuche da Argentina, especificamente da Patagônia, terra que antes de ser invadida pelos colonizadores espanhóis era chamada de Puelwillimapu. É uma obra que cria pontes entre o passado e a atualidade. O título, “O trem do esquecimento”, em português nos remete à construção da ferrovia que traria o progresso, mas também tentaria apagar o povo originário da Patagônia e da história da Argentina.

Em suas páginas iniciais, ela escreve:

“Soy una mujer mapuche. ¿Qué es ser mapuche? Les diré: mapu es tierra, y che, gente; gente de la tierra. Pero no es la idea de tierra que todo el mundo tiene, es más que eso. Es el mundo tangible y el mundo perceptible, el mundo bajo nuestros pies y también el de arriba, y el que está alrededor nuestro. La mapu tiene vida. Es una fuerza, un newen. ¡Qué bella palabra! ¿No lo creen así? Newen: energía, fuerza, toda forma de existência que crea y alimenta el mágico círculo de la vida” [5].

Os povos originários caminham com passos suaves e firmes há milênios e chegam hoje para nos convidar a adentrar em sua cosmovisão e propor uma renovação fundada na energia, na força e no entendimento de que toda forma de existência cria e alimenta o círculo mágico da vida. Neste mês de maio de 2024 vivemos novas devastações causadas pela emergência climática. Nada mais será igual nestes locais afetados profundamente pelas ações humanas que causam as devastações na terra e na vida planetária.

O agronegócio, o modelo de produção agrícola baseado na monocultura e na pecuária ostensiva, nos grandes latifúndios e no uso doentio de agrotóxicos, consome mais de 70% dos recursos da terra e produz menos de 20% dos alimentos, ele sustenta a produção industrial de alimentos ultraprocessados, nada saudáveis, e resulta em um dos grandes responsáveis pela emissão de gases de efeito estufa. O atual modelo de agronegócio mata a terra, devastando florestas, animais, povos e, sem dúvida, é um dos maiores responsáveis pela emergência climática. Fica o convite para a renovação do pensamento, para o despertar telúrico e para a luta contra o terricídio. Vale lembrar que o ser humano depende da terra e não o contrário.

Referências bibliográficas:

1] Tradução livre: “O verão aproximava-se e com ele o tempo das oferendas e o compromisso de renovar os votos de harmonia com a terra”. MILLÁN, Moira. El tren del olvido. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Planeta, 2019, p. 311.

[2] Tradução livre: “Os feminismos decoloniais são contribuições dispersas na geografia, porém estão situados geopoliticamente no Terceiro Mundo. São parte das epistemologias do sul, sendo os conhecimentos geopoliticamente inspirados nos suis globais contrapostos às epistemologias dominantes dos nortes globais”. NEMOCON, Maria Eugenia García; MONTANARO, Ana-Marcela; MUÑOZ, Luisa Maria Ocaña. Eco-feminismos decoloniales: abrir miradas. Madrid: Ecologistas em Acción, 2021, p. 16.

[3] GONZÁLEZ, Aimé Tapia. Mujeres indígenas en defensa de la tierra. Ediciones Cátedra, 2018.

[4] SANCHES, Patrícia Karina Vergara. Siwapajti: medicina da mulher, memória e teoria de mulheres. Belo Horizonte: Editora Luas, 2022, p. 37.

[5] Tradução livre: “Sou uma mulher mapuche. O que é ser mapuche? Eu direi: mapu é terra, e che, gente; gente da terra. Mas, não é a ideia de terra que todo mundo tem, é mais do que isso. É o mundo tangível e o mundo perceptível, o mundo abaixo dos nossos pés e também acima, e o que está a nossa volta. A Terra tem vida. É uma força, uma renovação. Que bela palavra! Não creem? Renovação: energia, força, toda forma de existência que cria e alimenta o círculo mágico da vida”. MILLÁN, Moira. El tren del olvido. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Planeta, 2019, p. 9.

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Manifesto Feminista nº03, Editora Luas

A mulher que se identifica com mulheres, escrito pelo grupo Radicalesbians, Nova York, 1970. Traduzido por Natália Corbello e publicado no site da Editora Luas em abril de 2021