COLUNA ÉTICA ANIMAL - JUS ANIMALIS
11 DE JULHO DE 2024
O que as enchentes do Rio Grande do Sul podem nos ensinar sobre a nossa relação com os animais não humanos?

“Algum mau-olhado fora atirado àquela comunidade; enfermidades misteriosas varreram os bandos de galinhas; as vacas e os carneiros adoeciam e morriam. Por toda parte se via uma sombra de morte. Os lavradores passaram a falar de muita doença em pessoas de suas famílias. Na cidade, os médicos se tinham sentido cada vez mais intrigados por uma nova espécie de doença que aparecia em seus pacientes. Registravam-se várias mortes súbitas e inexplicadas, não somente entre adultos, mas também entre as crianças; adultos e crianças sentiam males repentinos, enquanto caminhavam ou brincavam, e morriam ao cabo de poucas horas. Havia, ali, um estranho silêncio. Os pássaros, por exemplo – para onde é que tinham ido? Muita gente falava deles, confusa e inquieta. Os postos de alimentação, nos quintais, estavam desertos. Os poucos pássaros que por qualquer lado se vissem estavam moribundos; tremiam violentamente, e não podiam voar. Aquela era uma primavera sem vozes” [1]. 

O trecho que inicia a nossa reflexão é uma citação do livro Primavera silenciosa, escrito por Rachel Carson em 1962. O capítulo que abre o livro apresenta um cenário distópico. No início da memorável obra sobre o pensamento ecológico, o primeiro capítulo intitulado Uma fábula para amanhã apresenta um cenário desolador. A fabulação não é completamente imaginativa, tratam-se de alguns casos que estavam ocorrendo graças ao avanço do agronegócio e do uso ostensivo de veneno na lavoura. A época da chamada Revolução Verde marcou o fim da produção de alimentos e início da produção de commodities. É importante termos clareza sobre o momento que a produção agrícola deixou de ser sinônimo de produção de alimentos. Quem produz alimentos é a agricultura familiar, nas pequenas e médias propriedades. As grandes propriedades, em sua maioria, produzem alguns grãos modificados geneticamente, regados a veneno e destinados à indústria, portanto, geram commodities. A Primavera silenciosa se caracterizou pelo silenciamento e morte dos pássaros. 

A chamada Revolução Verde foi sinalizada pela morte do verde e pelo extermínio da diversidade biológica nas lavouras. Sua caracterização foi marcada pelo extensionismo rural, pela monocultura, pela destruição das florestas e das áreas de reserva ecológicas, pela poluição hídrica e pelas atividades antrópicas, como descarte irregular de resíduos tóxicos derivados da atividade agrícola, pela incorporação das sementes modificadas geneticamente, pela utilização do veneno e dos agrotóxicos de forma indiscriminada, dentre outras características altamente devastadoras ao meio ambiente, aos animais humanos e não humanos e à vida planetária. 

Rachel Carson (1907 – 1964) foi pioneira na denúncia dos desmembramentos que a Revolução Verde traria e o modo negativo que afetaria o globo terrestre, causando morte e destruição, não somente humana, mas de várias espécies dos reinos animal, vegetal e mineral. Ela foi uma ecologista, escritora e pesquisadora norte-americana. Rachel pesquisou os efeitos deletérios dos pesticidas sintéticos na natureza e, sobretudo, aos animais humanos e não humanos. 

Primavera silenciosa foi uma obra retumbante, chamou a atenção de ecologistas, empresários do agronegócio e ganhou grande repercussão por sua característica de denúncia e por sua potência poética. Tanto a escritora quanto a editora foram ameaçadas de morte graças ao tom de protesto de seu livro. Ele foi traduzido para mais de 50 países e, geralmente, é citado como pioneiro nos estudos ecológicos. 

Em 2023, comecei a escrever para o portal Jus Animalis logo após as enchentes que devastaram a região norte do Rio Grande do Sul. Abordei alguns dos impactos causados pela emergência climática no artigo Rumo ao ecoveganismo! O Antropoceno é uma nova era geológica caracterizada pelo impacto humano na Terra. Alguns padrões sistemáticos altamente destrutivos são reeditados pela humanidade e, em consequência, resultaram em um devastador colapso climático. Os últimos séculos são caracterizados pela devastação das florestas e dos diversos biomas para produção nos moldes capitalistas e imperialistas. O agronegócio foi um dos grandes motores de destruição das florestas com a finalidade de criação de gado e de produção de grãos transgênicos para alimentar os mesmos.

Como havia registrado: “as atuais catástrofes, nomeadas ‘naturais’, não são naturais, são fruto da ação humana. […] O agronegócio gera alimentos sem qualidade nutricional, a base de produtos químicos tóxicos e da produção de grãos modificados geneticamente. Alimentos nada saudáveis são usados para engordar os animais não humanos, por sua vez, criados em cativeiros insalubres, e, também usados para abastecer a produção de alimentos ultraprocessados. 

Com a devastação da Terra, dos biomas, propiciada pela industrialização e pelo modo de produção hegemônica de alimentos e produtos derivados do agronegócio, vimos surgir a sexta extinção em massa” [2].

Em menos de um ano após aquela reflexão, o Rio Grande do Sul foi devastado pelas enchentes. Foram quase 95% das cidades gaúchas afetadas pelas chuvas que invadiram as cidades e destruíram casas, comércio, indústrias, equipamentos rurais, lavouras, etc. Segundo a Defesa Civil, 471 cidades foram impactadas pelas tempestades. Quase 200 pessoas morreram arrastadas pelas águas ou soterradas pelos escombros, algumas ainda estão desaparecidas. Um número incontável de pessoas não humanas morreu sem conseguir fugir das águas. As consequências serão sentidas por longo tempo, pois, desta vez a destruição e morte foi brutal.

Os animais começaram a ser resgatados com muita dificuldade e resistência por parte de algumas pessoas que defendem que os humanos são prioridade. A prioridade deveria ser a vida planetária. Se assim fosse, o ser humano não estaria trabalhando arduamente para o fim da sua própria espécie e de outras tantas. A atuação das Ongs não foi fácil, havia necessidade de ajuda com barcos, equipes e equipamentos de segurança. Foi uma luta árdua e compartilhada via redes sociais. Graças ao trabalho nas redes sociais, equipes de outros estados se locomoveram e ofertaram ajuda para o resgate de milhares de vidas não humanas. Os abrigos temporários ainda estão lotados e sendo ameaçados de fechar, graças ao total descaso do governo estadual.

A tragédia no Rio Grande do Sul poderia ter sido evitada, pois havia o alerta sobre a volta das enchentes. O governo estadual não somente foi omisso no planejamento urbano e na manutenção de diques e barragens que foram motores que impulsionaram um desastre histórico. As ações de Eduardo Leite afrouxaram as leis ambientais no estado para favorecer o agronegócio, sucatearam a estrutura pública e trabalharam para o agravamento da vulnerabilidade do Rio Grande do Sul diante dos eventos climáticos extremos.

É importante lembrar de seu compromisso com o agronegócio e com os grandes empresários. Por exemplo, depois da denúncia de trabalho análogo ao escravo que envolveu as vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, Eduardo Leite beneficiou as empresas em 2023 com um incentivo fiscal de R$ 70,6 milhões. É o governo da extrema direita trabalhando para a alta classe empresarial e para o agronegócio e, em consequência, favorecendo o agravamento das catástrofes climáticas.

O governador chegou a fazer uma proposta absurda de incentivo financeiro para quem adotasse um animal resgatado. O auxílio proposto foi de R$ 450 reais por animal adotado, limitado a dois por pessoa. A proposta é imoral, é uma afronta ao trabalho voluntário de ativistas da causa animal e das Ongs envolvidas nos resgates. 

Diante da avalanche de críticas, o governo recuou. Quando o governo trabalha contra o povo, a fauna e ignora a crise climática, não há como escapar do infortúnio. O que aconteceu no Rio Grande do Sul em 2024 foi uma tragédia anunciada e ignorada pelos governantes. 

Os campos no Rio Grande do Sul foram devastados durante séculos para servir de pastagem. Hoje o extensionismo rural promove a continuidade do extermínio da fauna e da flora. Orgulhoso do churrasco como “prato típico” da região, o povo gaúcho deixa de olhar para o futuro sem carne, uma das poucas possibilidades de barrar a morte e a devastação. A cena dos animais mortos nas propriedades rurais foi dilacerante. Porcos, vacas, cabritos, cavalos que estavam em cativeiros de morte e não puderam fugir formaram um cenário de guerra. A morte espreita aquela terra que tanto se orgulha de ter como “prato típico” o sangue inocente.

O cavalo caramelo virou símbolo da resiliência animal. A sua imagem ganhou o mundo, o seu resgate viralizou e muitas coisas se desdobraram. Hoje as pessoas que atuaram na frente de batalha pela vida destes resgatados estão de olho nas tentativas de escravizar o cavalo nas exposições, gineteadas e rodeios. Os porcos, vacas, bois salvos foram e estão sendo devolvidos para seus algozes. O mais difícil é perceber que para a maioria das pessoas as conexões entre a crise climática e o seu modo de vida especista não são percebidos.    

O que as enchentes do Rio Grande do Sul podem nos ensinar sobre a nossa relação com os animais não humanos? Devemos tirar várias lições desta tragédia anunciada. A política é coisa séria, é crucial o povo começar a perceber que a extrema direita tem como meta o lucro a qualquer preço. Os governos de extrema direita ajudam a nata do empresariado e do agronegócio. O custo do Estado mínimo será sentido somente pelo povo. As verbas arrecadadas com os seus impostos não serão devolvidas com políticas públicas populares e com finalidade de minimizar a crise climática. O negacionismo climático leva à morte e devastação! A extrema direita é negacionista.

A grande lição a ser tirada desta tragédia é o descompasso entre a humanidade e as outras espécies. Mesmo diante do avanço científico e das pesquisas que apontam para um risco iminente do ser humano ser mais uma espécie exterminada na sexta extinção, o especismo não está sendo pautado pelos governantes e exigido pelo povo. A crença na superioridade humana diante das outras espécies está nos levando a passos largos para a marcha da autodestruição. A Primavera silenciosa chegou ao Rio Grande do Sul! 

Referências bibliográficas:

[1] CARSON. Rachel. Primavera silenciosa. 2.ed. São Paulo: Melhoramentos, 1969, p. 12.

[2] LESSA, Patrícia. Rumo ao ecoveganismo! Jus Animalis. 3 out. 2023. Disponível em: https://jusanimalis.com.br/artigos/rumo-ao-ecoveganismo. Acesso em 08 jul. 2024.

[3] MUNHOZ, Fábio. Chuvas no Rio Grande do Sul: quase 95% das cidades gaúchas foram afetadas. CNN Brasil. São Paulo, 29 mai. 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/chuvas-no-rs-quase-80-das-cidades-gauchas-foram-afetadas-veja-lista/. Acesso em 08 jul. 2024.

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