Em nosso primeiro texto de 2024 vamos abordar, de forma breve, o repúdio e a adoração aos gatos. Ao longo da história, vemos encontros e desencontros entre a espécie humana e os gatos. Fruto de superstições e desinformações, algumas atitudes são extremamente prejudiciais à vida e à integridade física destes adoráveis bichanos. 

A matéria veiculada pelo jornal O Globo intitulada “Ter gatos de estimação mais do que dobra o risco de uma pessoa desenvolver esquizofrenia, descobrem pesquisadores” foi um desserviço para a causa animal e, especialmente, para a espécie. A matéria publicada dia 12 de dezembro de 2023 foi contestada pelo Conselho Regional de Medicina Veterinária do Rio de Janeiro (CRMV-RJ). 

Segundo o CRMV-RJ não existiu um cuidado técnico na elaboração do texto, escrito sem um aprofundamento e, também não houve a preocupação em escutar um profissional da Medicina Veterinária. O resultado final foi uma matéria que pode alimentar preconceitos e gerar um sensacionalismo perigoso para a espécie, além disso, deve ser considerada uma desinformação com consequências danosas e destrutivas.

O conselho se colocou à disposição do veículo informativo para contribuir com uma abordagem científica, responsável e esclarecedora [1]. Vale lembrar que este tipo de matéria sensacionalista pode gerar abandono e preconceito contra os animais. Até o presente momento não houve uma resposta do jornal e nem sequer uma preocupação em reformular o texto com base em dados técnicos e com depoimentos de profissionais gabaritados no assunto. 

Não é de hoje que vemos tamanha injustiça com nossos felinos domésticos. Uma das páginas da história mais sinistras para esta espécie foi, sem dúvida, o período da inquisição. Sabemos que houve uma perseguição às bruxas e aos bruxos, que geralmente eram pessoas das aldeias envolvidas com cura, benzimentos e cuidados com a saúde, muito precária naquela época. Porém, pouco se sabe sobre a caça aos gatos. 

O Papa Inocêncio VIII foi o responsável por decretar que os gatos eram uma representação do mal e, portanto, deveriam arder nas fogueiras. Muitas mulheres foram para as fogueiras juntos com seus companheiros gatos, foi um período de perseguição sistemática e de muita superstição. Além dele, o Papa Gregório IX emitiu uma bula papal que mencionava o uso de gatos pretos em uma suposta seita herege na Alemanha. Doravante, iniciou-se um longo processo de massacre aos gatos, vistos como personificação do diabo. 

Tal fanatismo religioso pode ser o responsável pela crença infundada de que os gatos pretos dão azar. Não se sabe ao certo a origem da ideia, mas acredita-se que pode ter surgido depois deste sinistro episódio histórico.

A consequência direta do extermínio de gatos foi o aumento na população de ratos. Os roedores eram hospedeiros de pulgas que alojavam as bactérias Yersinia pestis, causadoras da peste que assolou a população europeia. Conhecida como peste negra, a doença matou mais de 200 milhões de pessoas na idade média. 

A consequência direta do extermínio de gatos foi a propagação de uma doença letal para os humanos. O fanatismo religioso gerou perdas incalculáveis. Ainda hoje algumas crendices são propagadas, tais como: gato preto dá azar, a sexta-feira 13 é um dia de infortúnio, dentre outras. Muitas destas obstinações são originadas do período inquisitorial.  

Para além do desprestígio, temos histórias que refletem conexões valorosas entre a humanidade e os gatos. Você já ouviu falar do Maneki Neko? Trata-se de um gato da sorte, gato que acena ou que dá boas-vindas, ele é muito conhecido na cultura oriental. É um gatinho esculpido em madeira, gesso, resina ou outro material, que é afamado no continente asiático e ganhou popularidade entre o final do século XIX e início do XX. Sua história remonta a uma lenda do século XVI que teria acontecido no Templo Gotokuji, localizado no Japão. 

Reza a lenda que em um dia de forte tempestade um nobre se abrigou sob uma árvore para se proteger da chuva. Ao observar o Templo, ele notou que uma gatinha acenava para ele. Curioso com o fato ele foi na sua direção. Logo que ele se afastou a árvore foi atingida por um raio. A gatinha que acena virou símbolo de boa sorte.

A beleza e sofisticação destes felinos foi motivo de veneração entre os povos babilônicos na Antiguidade. Entre as divindades do panteão egípcio encontramos Bastet, representada por uma gata com corpo humano carregando em uma das mãos o sistro, um instrumento musical sagrado. Ela era filha de Rá, o deus solar. 

Os cultos à deusa Bastet, que simbolizava fertilidade, saúde e proteção às mulheres e aos gatos, se propagaram por toda a região. Seu Templo está localizado na colina de Bubástis, um dos sítios arqueológicos mais antigos do Egito, a cerca de 85 km a noroeste do Cairo, cujas descobertas datam da IV dinastia, entre 2630 a 2500 a.C [2]. 

Na atualidade a espécie ganhou notoriedade e está nos livros, nos contos, nas representações iconográficas, nas artes e nas mídias. No Brasil, Nise da Silveira foi responsável por dar uma nova luz às relações entre a humanidade e estes felinos. 

Ela nasceu em Maceió, Alagoas, em 1905, ingressou na Faculdade de Medicina em 1921 em Salvador, Bahia, onde foi a única mulher de sua turma, assim como uma das primeiras médicas do Brasil. Em 1933, mudou-se para o Rio de Janeiro, cidade onde passou em um concurso público para o Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II. Foi neste local onde ela iniciou os seus trabalhos que a tornaria um exemplo de mudança na forma invasiva e autoritária de tratamento psiquiátrico. 

A médica e psiquiatra Nise da Silveira foi marcada pelo debate sobre os laços afetivos entre pessoas e animais, por ela nomeados “animais não humanos”. Nas décadas de 1950 e 1960, Nise da Silveira investiu nas relações afetivas entre os animais não humanos e os/as pacientes internos para criar um elo de comunicação que havia sido rompido graças aos modelos tradicionais. 

Ela percebeu a facilidade com que pacientes esquizofrênicos se vinculavam aos cães e gatos. Em seu trabalho ela desenvolveu o conceito de “afeto catalisado”. Ela partia da ideia de que é importante que o paciente conte com a presença não invasiva de um co-terapeuta (animal não humano) que irá permanecer com o doente, funcionando como ponto de apoio seguro a partir do qual o doente possa se organizar psiquicamente. 

Após ilustrar exemplos de co-terapeutas, Silveira afirma que animais são “excelentes catalisadores”. Segundo ela, eles reúnem qualidades que os fazem muito aptos a tornar-se ponto de referência estável no mundo externo [3]. 

A aproximação dos internos com os animais não humanos do Centro Psiquiátrico Pedro II começou por acaso quando foi encontrada uma cadelinha abandonada e faminta no terreno do hospital. Silveira tomou-a nas mãos e, percebendo a atenção de um dos internos, perguntou-lhe se gostaria de tomar conta do bichinho “com muito cuidado”. Diante da resposta afirmativa, ela deu o nome à cachorrinha de Caralâmpia. 

Os resultados terapêuticos da incumbência assumida pelo paciente foram excelentes, e assim, ao longo de sua obra, ela faz referência a outros casos em que ocorrem relações afetivas entre pacientes e animais não humanos. Desde então, gatos e cães fazem parte daquele ambiente, antes hostil e torturante. Dedicada aos felinos, a obra “Gatos, a emoção de lidar” é um exemplo da teoria de Nise e está ilustrada com artes e poemas dedicados aos bichanos. Uma obra primorosa e ainda pouco conhecida. 

Como vimos, os gatos podem nos trazer muitas alegrias, nos curar e nos tornar melhores, redesenhando nossa existência e nossas formas de relacionamento se estiverem vivos e saudáveis ao nosso lado, em nossos lares e em espaços públicos construídos com base no respeito ao direito à vida.